Kiss 10 anos

Relembre os principais desdobramentos da tragédia que marcou a história de Santa Maria

Eduarda Costa e Leandra Cruber


Ao longo de 10 anos, a tragédia da boate Kiss tem marcado a história de Santa Maria. O incêndio na casa noturna e a morte de 242 pessoas abriram o capítulo mais triste na história da cidade. Da trágica madrugada até os dias atuais, os desdobramentos do Caso Kiss revelam uma série de acontecimentos, que começaram por volta das 2h30min de 27 de janeiro de 2013, mas que, até hoje, não tem fim.

Foram anos de luto e luta por parte de familiares e amigos de vítimas e homenagens que marcaram os meses e os anos da tragédia. Inquéritos, denúncias e pedidos por justiça também criaram a expectativa de que uma resposta por parte do Poder Judiciário poderia ser dada. Ainda, teve mudanças nas legislações (hoje bastante flexibilizadas), a projeção de um memoriale a criação de uma associação. Em uma década, muito aconteceu. Em 2021, o tão esperado julgamento de quatro réus ocorreu, sendo eles condenados e presos. Oito meses depois, um revés. O Tribunal de Justiça do RS anulou o júri. Nestes 10 anos, todos os dias foram de atos de resistência e luta. Confira, a seguir, os 10 principais momentos que marcaram para sempre a história de Santa Maria.

Marco 1: a madrugada do incêndio

Foto: Germano Rorato (Arquivo Diário)

Por volta das 2h30min do dia 27 de janeiro de 2013, quando a banda Gurizada Fandangueira, uma das atrações da festa na boate Kiss, animava o público, um dos músicos acionou uma espécie de sinalizador e uma fagulha alcançou o revestimento acústico da casa noturna. A queima ocasionou a liberação de cianeto, gás tóxico.

Os sobreviventes, pretos da fuligem e com os corpos queimados, saiam um a um, porta afora, com a cooperação de uma tropa de voluntários, militares e policiais numa tentativa desesperada de salvar quem estava na Kiss. Houve quem morresse tentando. Naquele dia, a cidade perdeu 230 vidas. O número de vítimas aumentou semana após semana com os óbitos de quem não resistiu às queimaduras e outras sequelas.

Ainda durante a madrugada, familiares de quem estava na Kiss se amontoavam em portas de hospitais para terem notícias. O Complexo Hospitalar Astrogildo de
Azevedo
foi o que mais recebeu feridos, cerca de 50 jovens foram internados. Já no Hospital Universitário de Santa Maria, foram 30. Pacientes foram levados a Porto Alegre.

Se os pais fossem informados de que os filhos não estavam em hospitais, a orientação era se direcionar para o Centro Desportivo Municipal (CDM), o Farrezão, local em que corpos foram deitados, lado a lado, para que pudessem ser reconhecidos. Mais de 200 corpos foram levados em cinco caminhões baú para o CDM. Nunca, no Estado, houve um cenário como o do ginásio de Santa Maria.

A presidente Dilma Rousseff (PT), que estava no Chile, veio à cidade. O Executivo de Santa Maria decretou luto de 30 dias. Na tarde do domingo, foram expedidos quatro pedidos de prisão temporária: dos proprietários da boate, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, do vocalista da banda, Marcelo de Jesus dos Santos, e do roadie da banda, Luciano Bonilha Leão.

Na noite de segunda-feira, dois dias após a tragédia, cerca de 35 mil pessoas se reuniram de branco e caminharam pelas ruas de Santa Maria. Com rostos lavados pelas lágrimas, a caminhada lembrou o capítulo mais dolorido da história de Santa Maria.

Marco 2: inquérito, prisões e criação da associação

Foto: Jean Pimentel (Arquivo Diário)

Em fevereiro de 2013, foi criada a Associação dos Familiares das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia em Santa Maria (AVTSM). O primeiro presidente foi Adherbal Ferreira, pai de Jhenifer, uma das vítimas da tragédia, na época com 22 anos.

Ainda, 55 dias depois da tragédia, a Polícia Civil concluiu o inquérito que responsabilizava 28 pessoas pelo incêndio. Quatro foram denunciadas pelo Ministério Público à Justiça. O delegado Marcelo Arigony, que esteve à frente do maior inquérito da história da Polícia Civil do Estado, diz que foram ouvidas quase mil pessoas para a conclusão do inquérito.

— Via um monte de corpos de vítimas na Kiss, uma cena muito difícil de presenciar. Contávamos de 40 a 50 vítimas. Só que não imaginávamos que, quando
passássemos por aquele grupo, encontraríamos outros tantos. Nós tínhamos o problema de fazer o reconhecimento das vítimas, aquela gurizada de 18 a 20 anos,
para mim, eram meninos e meninas. Eu lembro que alguém me perguntou para onde levaríamos os corpos, porque o IML tinha capacidade de receber um ou cinco,
e, depois, tínhamos que fazer a necropsia. E tudo era muito difícil. Foi tudo sendo construído a muitas mãos.

Segundo Arigony, mesmo que, hoje, somente quatro indiciados pela polícia sejam réus no processo do Caso Kiss, os apontados no inquérito policial deveriam
ser responsabilizados
. No entanto, o delegado ressalta que não há espaço para frustração.

— Nós fizemos o melhor que pudemos, dentro da nossa alçada, mas o resto é com eles. Se você me perguntar se julgar só os
quatro réus é justiça? Enquanto pessoa, eu, Marcelo, acho que não. Acho que, na verdade, a justiça é uma utopia. Um pai do extremo oeste perdeu as duas filhas,
as únicas duas filhas ele perdeu no incêndio, que justiça vamos ter com isso? Mas, o que se espera para acalentar e dar um pouco de conforto para as famílias é que
esse processo termine — ressalta.

Marco 3: morre a última vítima da tragédia

Foto: Claudio Vaz (Arquivo Diário)

Em 19 de maio de 2013, Mariane Wallau Vielmo, que estava internada há quatro meses no Hospital de Clínicas em Porto Alegre, morreu. Ela é a 242ª vítima da tragédia da boate Kiss. Naquela noite, Mariane foi à Kiss com três amigas. Nenhuma delas sobreviveu.

Ela tinha 25 anos e era natural de Santiago. Estudava Sistemas de Informação no Centro Universitário Franciscano, atual Universidade Franciscana (UFN).

Ainda, naquele mês, outros quatro jovens permaneciam internados em hospitais de Porto Alegre para a realização de procedimentos, como enxertos de pele, devido à gravidade das queimaduras.

Marco 4: 365 dias de saudade e luta por justiça

Foto: Jean Pimentel(Arquivo Diário)

Em 27 de janeiro de 2014, quando a tragédia da boate Kiss completou um ano, a comunidade santa-mariense se mobilizou para realizar uma série de homenagem às vítimas. Mesmo com a dor ainda latente, cerca de 400 pessoas participaram de uma vigília em frente à boate.

No chão da Rua dos Andradas, membros do Movimento Santa Maria do Luto à Luta pintaram 242 corpos. Em seguida, familiares das vítimas acenderam 242 velas. Perto
da hora que o incêndio teria começado, sirenes foram tocadas. Já pela manhã, manifestantes foram em frente ao Ministério Público para reivindicar justiça. Pela tarde,
o comércio de Santa Maria fechou as portas mais cedo como forma de homenagem. À noite, os nomes das 242 vítimas foram lidos, seguidos de batidas de tambor.

Foto: Fernando Ramos (Arquivo Diário)

Até então, 15 pessoas respondiam na Justiça, direta ou indiretamente, pelo incêndio na casa noturna em processos em três esferas da Justiça: criminal, administrativa e militar.

Marco 5: o primeiro presidente deixa a AVTSM

Foto: Jean Pimentel (Arquivo Diário)

Dois anos após a tragédia, Adherbal Ferreira decidiu deixar a presidência da AVTSM.

— Entendo que meu tempo na presidência já acabou. Precisamos de outra pessoa com mais disposição para uma nova caminhada. Acho que fiz o que
precisava fazer (…) De 2013 até abril de 2014, eu era 90% associação e 10% família e empresa. Realmente, me dediquei muito. Era uma necessidade minha.
Queria abraçar todo mundo, mas, com o tempo, isso foi afetando um pouco a minha saúde. Preciso de um tempo para mim, preciso dar uma respirada.
Consegui abraçar todos, só que a gente vai cansando. Não no sentido de desistir da luta. Isso, jamais. A justiça, quero que seja feita. Lutei muito para isso – disse em
entrevista ao Diário.

Depois de Adherbal, quem assumiu a presidência da AVTSM foi Sérgio da Silva, pai de Augusto Sérgio Krauspenhar da Silva, e Flávio Silva, pai de Andrielle Righi da Silva, que morreram na tragédia da boate Kiss. Eles também foram processados por calúnia e difamação por promotores do Ministério Público de Santa Maria, em 2017, após a realização de textos e cartazes que falavam sobre as irregularidades na casa noturna.

Marco 6: decisões sobre o júri popular

Foto: Fórum (Divulgação)

Em 27 de julho de 2016, o juiz titular da 1ª Vara Criminal, Ulysses Fonseca Louzada, anunciou que os quatro réus do processo criminal da boate Kiss iriam a júri popular por entender que houve dolo eventual (quando o acusado assume, por meio de suas ações, risco de matar).

Os réus recorreram ao Tribunal de Justiça para que o dolo eventual fosse retirado, tornando o caso um homicídio culposo (quando não há intenção de matar).

Na mesma época, a tragédia completava 42 meses e as homenagens às vítimas tinham uma participação tímida da comunidade. Pais e sobreviventes começaram a falar e a lamentar sobre a indiferença da população.

Em março daquele mesmo ano, ocorreu a primeira votação no TJ, mas não houve unanimidade na decisão dos desembargadores. Por isso, o caso retornou ao TJ para uma segunda votação, quando, então, a decisão foi por não submeter os réus ao júri popular.

Marco 7: leis para prevenir tragédias são criadas

Foto: Ronald Mendes (Arquivo Diário)

Aprovada em 2013, a lei 14.376, conhecida como “Lei Kiss Estadual”, que estabeleceu normas sobre segurança, prevenção e proteção contra incêndios nas edificações e
áreas de risco de incêndio
, passou a penalizar estabelecimentos que descumpriam as normas em setembro de 2014.

Dois anos depois, a Assembleia Legislativa aprovou a primeira flexibilização na legislação e foi ampliada a validade de alvarás emitidos pelos bombeiros. No ano passado, a Assembleia Legislativa aprovou, novamente, a flexibilização da Lei Kiss. Foram 39 votos favoráveis e seis contrários. Com a sanção do projeto de autoria do governo do Estado, não serão mais exigidos alvarás para 732 tipos de imóveis.

O deputado Mateus Wesp (PSDB), na época líder do governo do RS, defendeu que as alterações eram necessárias para desburocratizar e acelerar o crescimento:

— Isso vai nos oportunizar celeridade, desenvolvimento econômico, desburocratização sem, obviamente, também colocar em risco a nossa legislação de
combate e prevenção a incêndios.

No âmbito federal, outra lei também foi proposta a partir da tragédia. Em março de 2017, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de Lei (PL) 2020/07, que passou a ser 13.425, ou “Lei Kiss Federal”. A legislação também estabeleceu normas de segurança para o funcionamento de casas de espetáculos.

Marco 8: expectativa pela desapropriação do prédio e construção de um memorial

Foto: Nathália Schneider (Diário)

Em maio de 2017, o prefeito Jorge Pozzobom (PSDB) apresentou a proposta de desapropriação do prédio onde funcionava a boate Kiss ao advogado da empresa
dona do imóvel. A promessa era que o local estaria desapropriado até 30 de junho daquele ano e, em 27 de janeiro de 2018, o prédio já estaria demolido para que a
pedra fundamental de um memorial fosse colocada. A desapropriação ocorreu em julho de 2017.

Em 2018, cinco anos após a tragédia, a demolição do prédio foi adiada devido a pedidos dos advogados que atuavam na assistência de acusação em nome da Associação dos Familiares, Pedro Barcellos Júnior e Ricardo Breier, que queriam levar os jurados para inspecionar o prédio. O projeto continua, e o memorial deve custar R$ 4 milhões.

Marco 9: definições sobre o maior julgamento da história do estado

Foto: Pedro Piegas (Arquivo Diário)

Em junho de 2019, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que os quatro réus iriam a júri popular. Porém, eles não responderiam às qualificadoras de meio
cruel (fogo e asfixia) e motivo torpe (ganância). Familiares de vítimas já falavam sobre o esgotamento físico e mental causado pela falta de respostas.

Foi somente em abril de 2021, quase dois anos depois da decisão do júri popular, que o julgamento foi marcado para 1º dezembro.

Em dezembro de 2021, ocorreu o julgamento dos quatro réus do Caso Kiss, no Foro Central I, em Porto Alegre. Durante 10 dias, testemunhas foram ouvidas. O
júri ficou conhecido como o maior da história do Judiciário gaúcho.

Elissandro Callegaro Spohr, Mauro Londero Hoffmann, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão foram condenados. A pena de Elissandro foi de 22 anos e seis meses de prisão. Mauro, 19 anos e seis meses. Os dois cumpriam penas na Penitenciária de Canoas. Luciano e Marcelo foram condenados a 18 anos de prisão. Os dois cumpriam a pena no Presídio de São Vicente do Sul.

Marco 10: julgamento de 10 dias é anulado

Foto: Pedro Piegas (Arquivo Diário)

No terceiro dia de agosto de 2022, o júri do Caso Kiss foi anulado e, assim, a condenação dos quatro réus já não valia mais. Por consequência, eles foram soltos. Foi por
2 votos a 1 que os três desembargadores da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) chegaram à decisão, durante o julgamento dos recursos das defesas dos quatro réus, de apelação do caso. Desde então, os réus aguardam um novo julgamento.

Na época, ainda que as defesas dos réus pedissem a anulação do júri alegando erros e vícios procedimentais praticados pelo juiz e pelo Ministério Público, juristas acreditavam em uma maior possibilidade de manutenção ou redução nas penas dos então condenados.

A anulação causou revolta para pais de vítimas e sobreviventes da tragédia. Em dezembro de 2022, o sobrevivente da tragédia e presidente de AVTSM, Gabriel Rovadoschi, deu um relato emocionante sobre os momentos que viveu no julgamento:

— Com a sentença proferida, foi a primeira vez que eu como sobrevivente senti que não tinha culpa de isso que aconteceu comigo. Foi muito significativo
ter a justiça, saímos com a perspectiva de uma esperança. Com a anulação, se coloca em grave risco não somente a saúde dos familiares e sobreviventes, mas se coloca em risco a vida de todos, porque a impunidade potencializa os danos que a tragédia causou.

 

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